foto: Manuel de Almeida / Lusa
A grande maioria das vítimas foi abusada mais do que uma vez. 96% dos abusadores eram homens e 77% eram padres, de acordo com o relatório final da comissão independente que investigou os abusos sexuais na Igreja.
Ao longo desta segunda-feira serão conhecidas as conclusões do relatório da comissão independente criada para estudar os casos de abusos sexuais na Igreja Católica desde 1950.
O relatório na íntegra só será divulgado às 15 horas, mas desde as 9h30 que já estão a ser divulgadas as principais conclusões na conferência de imprensa de apresentação dos resultados na Fundação Calouste Gulbenkian.
A comissão validou 512 testemunhos dos 564 que recebeu, com um número mínimo de 4815 vítimas. Foram remetidos 25 casos para o Ministério Público.
Pedro Strecht, o pedopsiquiatra que coordenou a comissão, começou por prestar “um tributo e homenagem sincera a todas as vítimas dos abusos” que “são muito mais do que um número ou estatística”. O especialista frisa que “a maior parte das vítimas não acha que haja reparação possível, mas aguarda um pedido de desculpa dos abusadores”.
O pico dos abusos aconteceu entre 1960 e 1990 e a maioria dos crimes teve lugar em seminários (23%), na igreja (18,8%), em confessionários (14,3%), nas casas paroquiais (12,9%) ou em colégios internos e escolas católicas (6,9%).
Há ainda relatos de casos já no século XXI e, mais tarde, muitos dos abusos passaram a acontecer ao ar livre em agrupamentos de escuteiros. A esmagadora maioria (96%) dos abusadores eram homens e 77% eram padres.
Só 4% das vítimas fez queixa à polícia
Os distritos do país onde mais crimes terão acontecido são Lisboa, Porto, Braga, Santarém e Leiria e a grande maioria dos abusos aconteceu quando a vítima tinha entre 10 e 14 anos, com uma idade média de início de 11,2 anos.
As vítimas tinham, em média, 52,4 anos quando contactaram a comissão e a maioria (52,7%) são do sexo masculino. Em 27,5% dos casos, os crimes prolongaram-se durante períodos superiores a um ano. 52,7% das vítimas foram abusadas mais do que uma vez.
“Na amostra predominam pessoas com grau de literacia elevado, 32% tem licenciatura, mas há um grupo elevado – quase 18% – que só tem habilitações literárias até ao nono ano”, explica Pedro Stretch sobre o perfil das vítimas.
Cerca de 12,9% das vítimas são ainda pós-graduados. 88,5% são residentes em Portugal e 53% são católicos, sendo que 25,8% destes são praticantes.
A grande maioria dos casos nunca chegou a ser denunciada às autoridades. 43% das vítimas falaram pela primeira vez sobre as suas experiências com os especialistas da comissão, 77% nunca apresentaram queixa à Igreja e apenas 4% denunciaram os abusos à polícia.
Cerca de 52% das vítimas demoraram 10 anos a contar a alguém que tinham sofrido abusos. As vítimas do sexo masculino geralmente contam aos cônjuges e aos amigos e as vítimas do sexo feminino preferem falar com a família. 56,2% alegam que as pessoas a quem contaram acreditaram na veracidade das denúncias.
Nos casos em que as vítimas confrontaram os abusadores, poucos foram aqueles que se mostraram arrependidos.
“Apenas uma parte residual dos testemunhos demonstra algum tipo de arrependimento ou pedido de desculpa por parte da pessoa abusadora. Mas, mesmo assim, era algo que surgia sempre revestido de uma razão exterior, como uma tentação imputada injustamente à criança ou a impossibilidade de reprimir os sentimentos”, explica a cineasta Catarina Vasconcelos.
O relatório já chegou às mãos da Conferência Episcopal este domingo e a comissão vai enviar à Igreja a lista dos alegados abusadores ainda no activo. A lista será também entregue ao Ministério Público.
Laborinho Lúcio revela ainda que a maioria das 25 denúncias remetidas para o Ministério Público já prescreveu. “A comissão independente não tem que fazer juízos sobre a possibilidade de maior ou menor sucesso da investigação criminal”, realça o ex-ministro da Justiça, que defende ainda que a idade limite de 23 anos para a vítima para poder apresentar queixa deve ser aumentada até aos 30 anos.
Como vai a Igreja responder?
Vários membros da hierarquia da Igreja marcaram presença na divulgação dos resultados do relatório, incluindo D. José Ornelas.
O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa adiantou que haverá uma assembleia extraordinária a 3 de Março para a CEP “reflectir sobre o significado” destes dados e para decidir que medidas vai adoptar para “fazer justiça ao sofrimento das vítimas que foram o eixo motor de todo o processo”.
Saberemos assim nas próximas semanas como a Igreja vai reagir às revelações da comissão e se vai seguir os exemplos das instituições de outros países que já foram alvo de investigações semelhantes.
Em França, por exemplo, depois de um relatório ter estimado que 330 mil vítimas foram abusadas por membros da Igreja entre 1950 e 2020, foi criado um Tribunal Penal Canónico Interdiocesano Nacional para acompanhar tantos os abusos sexuais como os delitos financeiros da Igreja.
A Conferência Episcopal francesa também vendeu imóveis das dioceses para pagar indemnizações às vítimas que podem chegar, no máximo, aos 60 mil euros. Até outubro do ano passado, havia 1500 pedidos de indemnização, mas só perto de 40 já tinham sido ressarcidas, relata o JN.
Outro exemplo que pode inspirar Portugal é o Chile. Em maio de 2018, todos os bispos chilenos apresentaram a renúncia ao Papa e pelo menos sete deixaram o cargo na sequência da onda de denúncias de abusos.
Na Bélgica, a Igreja pagou indemnizações às vítimas no valor de 3,9 milhões de euros, entre 2012 e 2015, através da fundação Dignidade, criada pela Conferência Episcopal. As indemnizações vão desde os 2500 euros nos casos de atentado ao pudor até aos 25 mil euros para as violações repetidas e graves.
Adriana Peixoto, ZAP //